O riso tem limite? O caso Leo Lins e o debate sobre humor, discurso de ódio e liberdade 4f4i6b
A recente condenação do humorista a oito anos de prisão e a uma multa de 300 mil reais provocou um debate acalorado no Brasil

Léo Lins (Foto: Reprodução)
A recente condenação do humorista Leo Lins a oito anos de prisão e a uma multa de 300 mil reais provocou um debate acalorado no Brasil sobre os limites do humor e a liberdade de expressão. Ele é conhecido por fazer piadas que ofendem sistematicamente minorias, como pessoas negras, pobres, LGBTQIA+, com deficiência, gordas ou nordestinas. Lins se tornou símbolo de uma fronteira delicada entre o humor corrosivo e o discurso de ódio. Sua condenação acendeu alertas: até onde pode ir um comediante? Quando o riso deixa de ser provocação legítima e se torna violência simbólica?
No centro da controvérsia está a própria Constituição brasileira. A liberdade de expressão é um direito fundamental, assegurado pelo artigo 5º, incisos IV e IX, que garantem a livre manifestação do pensamento e da atividade intelectual, artística e de comunicação. No entanto, esse direito não é absoluto. O mesmo artigo 5º também protege a honra, a dignidade e a imagem das pessoas, estabelecendo limites à liberdade quando ela colide com outros direitos fundamentais. Além disso, o Código Penal tipifica como crime a injúria racial, a homofobia, a xenofobia e a apologia à violência. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, equiparou a homofobia ao racismo em 2019, e a Lei 14.532 de 2023 reforçou as penas contra crimes de discriminação.
Piadas que desumanizam pessoas negras, zombam de deficiências ou ridicularizam nordestinos ultraam os limites do aceitável. O riso, nesses casos, reforça estereótipos e contribui para a exclusão. E mais: quando essas piadas fazem rir parte do público, deixam de ser apenas piadas e am a funcionar como apologia ao preconceito. Rir de uma ofensa racial é normalizá-la. Rir de uma piada xenofóbica é legitimar a xenofobia. Esse tipo de humor não apenas retrata o preconceito, ele o valida e o fortalece socialmente.
A reação de parte da imprensa e de outros comediantes foi imediata. Muitos evocaram o argumento da censura, comparando o caso ao cerceamento da arte. Mas é necessário distinguir dois pontos, a censura prévia, proibida pela Constituição, e a responsabilização judicial após a prática de um crime. O humor não está acima da lei, e a liberdade de expressão não é autorização para humilhar os outros.
Esse debate também revelou um medo recorrente, haveria dois pesos e duas medidas? Se um humorista de esquerda, por exemplo, faz piadas sobre Bolsonaro, seria igualmente punido? Ou a punição só se aplica quando as vítimas são minorias? A dúvida é legítima, mas o que está em questão não é o viés político, e sim o conteúdo e os impactos da fala. A lei já prevê punições para apologia ao crime e incitação à violência, independentemente do alvo.
Entre o humor e o ódio 7n6y
Historicamente, minorias são alvos muito mais frequentes de ataques do que figuras públicas poderosas. Isso não isenta ninguém, se uma piada de esquerda reproduz ódio, também deve ser analisada à luz da lei. Mas a crítica política, ainda que ácida, não é o mesmo que o escárnio contra a dignidade de um grupo vulnerável. A lei pune o preconceito, não o desconforto.
Essa tensão entre liberdade de expressão e responsabilidade não é exclusiva do Brasil. Na Alemanha, por exemplo, esse equilíbrio é regulado com clareza. A liberdade de expressão também é um direito fundamental, mas encontra limites precisos, sobretudo em defesa da dignidade humana e da memória histórica. Marcado pelo trauma do nazismo, o país firmou um pacto constitucional que coloca a dignidade da pessoa humana como fundamento da democracia. Nesse contexto, manifestações que incitam o ódio, negam o Holocausto ou banalizam o sofrimento de grupos perseguidos são tratadas não como opiniões, mas como agressões à ordem democrática.
A legislação é rigorosa. O parágrafo 130 do Código Penal Alemão prevê penas que podem chegar a cinco anos de prisão para casos de incitação ao ódio contra grupos étnicos, religiosos ou sociais, bem como para a negação ou banalização de crimes como o Holocausto. No entanto, mais do que o aparato jurídico, é a consciência histórica da sociedade alemã que estabelece os contornos do aceitável.
A escassez de casos envolvendo comediantes punidos por piadas ofensivas talvez se explique justamente por esse pacto cultural consolidado. O humor que banaliza o Holocausto, por exemplo, é amplamente rejeitado pela opinião pública antes mesmo de qualquer intervenção do Estado. Trata-se de uma sociedade que aprendeu que certas memórias não são matéria prima para o riso.
Esse entendimento, no entanto, não é exclusividade alemã. Outros países europeus também estabeleceram limites nítidos ao humor quando ele ultraa a linha do discurso de ódio. Um exemplo notório é o do comediante francês Dieudonné M’bala M’bala, conhecido por piadas antissemitas e por negar a existência das câmaras de gás. Ele foi condenado na Bélgica, em 2012, por declarações feitas durante um show, e novamente em 2023, na Suíça, por negacionismo do Holocausto. Esses casos mostram que, mesmo fora da Alemanha, a Europa vem tratando com seriedade a necessidade de barrar o riso que viola os direitos humanos fundamentais.
Ao contrário do que alegam setores radicais, esse tipo de legislação não reprime o pensamento, ele protege a sociedade da normalização de ideologias destrutivas. E essa lição pode servir também ao Brasil, defender o humor como linguagem legítima não é o mesmo que tolerar a humilhação disfarçada de piada. Liberdade, nesse contexto, exige responsabilidade.
A inteligência do riso, o exemplo cearense 5a4o4e
Felizmente, há resistências criativas. Um exemplo vem do próprio Nordeste, região frequentemente alvo das piadas de Leo Lins. O humor cearense é conhecido por sua inteligência, inventividade e crítica social. Estamos falando de um povo que já mangou até do sol, que transforma adversidade em riso e faz da ironia uma forma de resistência cotidiana.
A lista é imensa, mas entre os principais nomes estão Tom Cavalcante, com suas imitações populares, Paulo Diógenes, criador da irreverente Raimundinha, Espanta, cearense por adoção, com seu humor absurdo, Falcão, que satiriza com ironia os costumes nacionais, Chico Anysio, mestre das múltiplas personas, Adamastor Pitaco, personagem de Adaildo Alves Neres, com seu deboche suburbano, e Rosicléia, criação de Valéria Vitoriano, que representa com escracho e afeto a mulher periférica e irreverente. Já Aluísio Júnior e Titela, criado por Jaderson Cavalcante, exploram com inteligência a rivalidade entre Ceará e Fortaleza, sem apelar ao preconceito.
É preciso também lembrar que, nos Trapalhões, Renato Aragão protagonizou cenas que hoje são criticadas por reforçar estereótipos raciais. A forma como o personagem Mussum era tratado evidencia os limites históricos de um tempo em que o racismo estrutural se manifestava inclusive no humor. O programa Nas Garras da Patrulha, sucesso na TV cearense, trouxe personagens populares e situações surreais.
Novas gerações mantêm viva essa tradição crítica e criativa. Humoristas como Max Petterson, Mila Costa, Dinah Moraes e Morgana Camila seguem essa linha nas redes sociais, com humor cotidiano e inventivo. Esse tipo de humor lembra que é possível fazer rir com inteligência, sem recorrer à crueldade. O riso, quando nasce da empatia e da crítica social, pode ser libertador. Mas quando ridiculariza os já marginalizados, se torna instrumento de opressão. O riso que humilha reafirma hierarquias e legitima desigualdades. O humor não é neutro. Ele sempre carrega uma escolha ética, rir com os outros ou rir dos outros.
O que está em jogo não é apenas o direito de fazer piadas, mas o tipo de sociedade que queremos reforçar. Uma sociedade que naturaliza o riso à custa da dor alheia consente com o silenciamento. Já uma sociedade que valoriza o humor como linguagem crítica, plural e inclusiva entende que fazer rir também é um ato de responsabilidade. Cabe a cada geração e a cada cidadão decidir de que lado do riso quer estar, o que emancipa ou o que perpetua o preconceito.
Paola Jochimsen 6g4j4c
Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.
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