STF contra o vazio da lei: redefinindo o Marco Civil da Internet 1n1w5p
O Supremo Tribunal Federal (STF) conduz um julgamento que pode redesenhar de forma firme e clara o cenário digital brasileiro

Primeira Turma do STF - 06/05/2025 (Foto: Gustavo Moreno/STF)
O Supremo Tribunal Federal (STF) conduz um julgamento que pode redesenhar de forma firme e clara o cenário digital brasileiro, ao enfrentar o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Este dispositivo isenta plataformas como Meta, Google e X de responsabilidade por conteúdos de usuários, exceto quando descumprem ordens judiciais.
A Suprema Corte avalia se essas gigantes devem responder por publicações que espalham fake news, crimes cibernéticos, calúnia, difamação, pedofilia, incentivo à automutilação, suicídio e ameaças à democracia, mesmo sem decisão judicial prévia. Realizado nos dias 4 e 5 de junho de 2025, o processo expõe a urgência de alinhar a justiça à velocidade de um mundo transformado.
O abismo entre o virtual e o real
As transformações do primeiro quarto do século XXI revolucionaram a vida digital, mas deixaram as leis nacionais defasadas. O excesso de virtualidade gera uma carência de real: publicações nas redes sociais causam impactos instantâneos, frequentemente devastadores, enquanto a justiça, ancorada no mundo real, enfrenta atrasos.
Essa contradição paralisa a efetividade das normas. Quando a lei alcança crimes digitais, como desinformação ou difamação, o dano já está consolidado, e a reparação é apenas parcial. O STF busca superar esse abismo, garantindo que a justiça não seja um eco tardio no deserto digital.
O artigo 19 é o pivô dessa batalha. Ele separa o caos da ordem, sendo o único instrumento jurídico capaz de proteger a sociedade contra ataques que ferem a honra, exploram vulneráveis — como crianças, adolescentes e idosos — ou promovem crimes graves, como pedofilia, exposição indevida, gincanas de automutilação e golpes cibernéticos.
Sem regulamentação, as plataformas operam em um vazio normativo, onde algoritmos amplificam conteúdos criminosos, movidos por um capitalismo que prioriza lucros sobre responsabilidade. Confiar na autorregulamentação das Big Techs é inócuo e não agrega segurança digital à sociedade. É o que penso. Usando uma imagem tosca, seria como pedir a um açougueiro cuidado extremo no abate de animais, esperando que interesses comerciais cedam à ética sem pressão externa.
Os casos e os votos no STF
Dois recursos guiam o julgamento. O primeiro, relatado por Dias Toffoli (RE 1.037.396), envolve danos morais por um perfil falso no Facebook.
O segundo, sob Luiz Fux (Tema 533), questiona se o Google deve monitorar conteúdos ofensivos sem ordem judicial. Nos dias 4 e 5 de junho, quatro ministros votaram, sinalizando o fim da imunidade irrestrita das Big Techs.
No dia 4, Toffoli declarou o artigo 19 inconstitucional, argumentando que a isenção absoluta compromete a segurança digital. Ele defendeu a responsabilização objetiva em crimes como pedofilia, racismo e incitação à violência, validando notificações extrajudiciais para remoção de conteúdos. Propôs um departamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para fiscalizar a decisão e deu 18 meses para Executivo e Legislativo criarem políticas contra desinformação.
Fux, também no dia 4, alinhou-se a Toffoli, considerando o artigo 19 inconstitucional. Ele cobrou monitoramento ativo para conteúdos “evidentemente ilícitos”, como apologia ao golpe ou pornografia infantil, e sugeriu o modelo “notice and takedown” para calúnia e difamação, exigindo remoção imediata após notificação da vítima.
No dia 5, Luís Roberto Barroso propôs uma solução intermediária. Reconhecendo a inconstitucionalidade parcial do artigo 19, limitou a responsabilização sem ordem judicial a crimes como terrorismo, tráfico de pessoas e ataques à democracia. Para crimes contra a honra, defendeu a exigência de decisão judicial, buscando equilibrar liberdade de expressão e responsabilidade. Barroso destacou a transparência em algoritmos e anúncios pagos como essencial.
André Mendonça, que pediu vista em 2024, apresentou seu voto nos dias 4 e 5, mas não o concluiu. Ele defendeu a “autocontenção judicial”, argumentando que a regulação digital cabe ao Congresso. Sugeriu considerar algoritmos na responsabilização e propôs modelos de compliance para plataformas que adotem medidas preventivas. Seu voto final é aguardado como um possível contraponto. Essa proposta de compliance, porém, soa ingênua. Esperar que empresas ávidas por lucros priorizem a segurança digital sem sanções é como confiar que fecharão contratos publicitários sabidamente enganosos pensando nos vulneráveis que colocam em risco.
O preço da desinformação
A ausência de regras claras no artigo 19 tem consequências trágicas. Durante a Covid-19, fake news contra vacinas contribuíram para mais de 700 mil mortes no Brasil, segundo dados subnotificados do Ministério da Saúde.
Entendo de forma enfática que essa tragédia, amplificada pela desregulação digital, poderia ter sido menos letal com uma legislação robusta.
E vou além: a desinformação mina a democracia. Parlamentares e governantes, usando notícias falsas para manipular a opinião pública, corroem o propósito da Política: assegurar o bem-estar coletivo, elevar qualidade de vida das camadas mais vulneráveis da sociedade e assegurar o desenvolvimento econômico e social da nação
A falta de regulação ameaça o Estado de Direito, transformando a esfera pública em um minado campo de mentiras.
O papel das Big Techs
Plataformas como Facebook, Instagram, Google e X lucram com o caos digital. Algoritmos impulsionam conteúdos falsos e criminosos para maximizar engajamento, alimentando um modelo de negócios que privilegia visualizações sobre ética.
A solução nos parece bastante clara: responsabilizar essas empresas onde são mais vulneráveis — seus lucros. Multas e sanções financeiras forçarão a adoção de moderação proativa e transparência algorítmica, coibindo o deserto de responsabilidades em que operam.
Temos que conviver que delegar a autorregulamentação às Big Techs é uma ilusão, uma ingenuidade sem fim. Seria como esperar que corporações gananciosas hesitem antes de lucrar com anúncios que ludibriam a sociedade e expõem os mais frágeis a perigos letais.
Um marco para o futuro
Com três votos favoráveis à responsabilização, o STF caminha para reformar o artigo 19. A decisão, esperada nas próximas semanas, pode obrigar plataformas a investir em compliance, mas há riscos de remoções excessivas para evitar litígios.
Entidades como a Coalizão Direitos na Rede defendem um equilíbrio entre responsabilidade e liberdade, enquanto a Abranet alerta para impactos econômicos.
O julgamento transcende o Brasil, podendo inspirar regulações globais em um mundo que clama por ordem digital. Aliás, o Brasil tem estado na vanguarda na regulamentação das redes sociais já desde 2014 e os olhos do mundo se voltam para esse julgamento.
O STF, ao enfrentar as Big Techs, planta uma semente em solo árido. Sua decisão pode fazer florescer um futuro em que a justiça não seja engolida pelas dunas do deserto digital, mas sirva como alicerce para um ecossistema virtual ético e seguro.
Washington Araújo 2l96y
Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.
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